Bateu-me a insónia e dei comigo a pensar que vou para o meu décimo campeonato do mundo. Dez, depois de arrancar em 1986 ainda meio escondido a tentar esgueirar-me para dar uma vista de olhos por alguns jogos que por cá passavam já depois da meia-noite, com pouca capacidade de perceber o que se passava mas cheio do entusiasmo que os 7 anos trazem, num mundo diferente, colorido, vibrante. Dez mundiais, porra. Trintenta anos depois, cá estou, bem diferente e muito, muito menos vibrante mas igualmente entusiasmado. Acho que mudei pouco desde essa altura na vontade de ver os jogos todos que puder e garanto que é sempre essa a perspectiva, tolhida que possa estar com as iniquidades desta organização e desta “coisa” que nos arrasta de quatro em quatro. Mas fez-me também reflectir um bocadinho sobre o que tem sido o meu percurso a acompanhar o desporto, algo que faço com maior ou menor intensidade desde…bem, pretty much desde aí.
O pequenito que anotava num caderno quadriculado os onzes de equipas que ia sacando dos jornais desportivos, juntamente com os equipamentos desenhados com inigualável incapacidade artística, esse já lá vai. Bem como o que jogava Elifoot, Kick Off, Sensible Soccer, Tracksuit Manager ou Championship Manager até altas horas da manhã, que nasceu e cresceu com números e nomes de jogadores estrangeiros na cabeça, que inundava as little grey cells com informações imperdíveis e valiosas sobre estatísticas indispensáveis sobre as finais dos europeus e mundiais, que fez cartazes para apoiar o Ajax contra o Malines em frente ao televisor do avô sem que ambos percebessem muito bem porquê, esse rapazola já lá vai. Afundou-se num grande vazio de validade que começou a perceber quando também começou a dar-se a conhecer e a conhecer. Sempre fui o “tolinho” da bola do meu grupo de amigos, o que sempre sabia mais um nome, mais uma equipa, mais um resultado obscuro. E assim me mantive até abrir a minha rede ao mundo e começar a conhecer quem sabia mais (olá, Miguel!), quem escrevia melhor (olá, vários!) quem se exprimia melhor (olá, tanta mas tanta gente!) sobre o desporto que sempre amei. E percebi que ao mesmo tempo que ia caminhando pelo agradável mundo da para-bola, havia sempre quem gostasse mais e quem me conseguisse fazer sentir humilde por, afinal, saber tão pouco. E fiz a minha paz bastante cedo com isso, por um lado pela intrínseca falta de arrogância, por outro pela necessidade de paz e de satisfação pessoal. Mudamos muito ao longo da nossa vida e se há coisa que fui aprendendo, acompanhado de amigos ou sozinho em noites de insónia como esta, é que a mudança positiva é sempre guiada por nós e nunca pelos outros. Quando mudamos para agradar a terceiros, dá quase invariavelmente borrada. E mudei, oh se mudei.
Comecei por querer tudo. Arranco um espaço meu, começo a escrever, busco parcerias, crio conexões com metade de um mundo que não conheço mas que penso conseguir integrar. Dou-me a conhecer, transformo-me num nome relativamente popular numa comunidade de nano-celebridades que crescem com a propagação socio-cultural da web e da forma como o mundo a vê. E procuro mais, especialmente no âmbito do meu clube, fugindo um pouco do futebol puro e focando-me na minha cor, que condiciona a minha vida como um farol cromático que escolho seguir e que me orienta, alegra, entristece e emociona. E sigo, feliz. Nunca deixo de ver futebol e nunca deixo de ver mais futebol do que apenas o meu clube. Mas vou desenvolvendo algum critério, do rapaz que via e seguia uma pluralidade de desportos, que conhecia os plantéis de andebol, basquetebol e hóquei em patins em vários clubes de Portugal e nalguns casos também lá por fora (NBA a fundo, NHL e NFL por alto), acaba por focar um bocadinho mais no futebol, o amor de sempre. Mas saber quem era o Stade de Reims e nomear o onze do Dínamo de Kiev que batemos nas meias de 87 já não chega, porque esta mesma rede que começo a conhecer é superior. É bem superior em factos, em mundo, em tudo, com um nível de arrogância boa que não tenho, que nunca tive, que invejo e admiro. Como o mesmo menino que sai do conforto do lar e do pequeno círculo de amigos, onde é um pequeno budinha e dono da maior parte do conhecimento colectivo e passar para um mundo académico onde se mantém semelhante mas que é agora parte de um colectivo cujo conhecimento é exponencialmente mais vasto e abrangente. Perceber isso, constatar que não se é tão bom e de espectro tão amplo quanto se pensava, pode transformar-nos numa de duas coisas: humilha, enfurece e obriga a que se lute, se conquiste o espaço de qualquer forma para se manter debaixo do holofote e a luz permaneça brilhante; ou faz com que a tartaruguinha enfie a cabecinha dentro da carapaça e viva feliz, mas menos intensa. E eu, como em quase todas as facetas da minha vida, escolhi a segunda. Centenas de vezes fui colocado perante este cenário: queres ser mais e melhor, juntando-te aos outros que ainda são mais e melhores que tu mas não o serão por muito tempo porque lá chegarás em breve? Ou preferes deixar-te obscurecer sem o foco da glória e continuar a existir, reorientando energias para o prazer simples e descansado? Sempre, ou quase, escolhi a segunda. E quando fui para a primeira, cedo me arrependi.
Voltei, portanto, para a carapaça. E lá dentro continuo a ter os meus cadernos quadriculados, os meus prazeres e predilecções, a vontade de ver a Gold Cup só porque a malta das Bermudas precisa de um tuga idiota para os apoiar, ou apoiar a equipa da Austrália só porque há um puto no plantel chamado Garang Kuol que vai para o Newcastle em Janeiro. Ou porque adoro séries estranhas e diferentes e não gosto de documentários sobre futebol e não faço ideia quem é o geórgio do Nápoles. Vou fazendo o que quero, quando quero e até quando me dá vontade de fazer, por isso parei de escrever quando me tirou mais tempo do que estava disposto a reservar (não me sinto confiante para escrever de forma consistente, por isso não me parece que volte em breve, mas apeteceu-me mesmo atirar com estas palavras por aqui, por nostalgia e por ficar demasiado longo para uma thread no Twitter) e também por isso continuo ainda a gravar o Cavani com aqueles dois maravilhosos idiotas. A mudança na perspectiva de tentar sempre fazer parte do grupo dos bons (dos melhores, vá, porque bom sou eu, pelo menos na minha quinta) faz com que me tenha deixado de preocupar com o impacto em terceiros e passar a preocupar cada vez mais no que me traz de bom, do prazer onanista que devia ser sempre o objectivo na concretização do criativo. Esta mudança não foi fácil mas foi, acima de tudo, natural. E vou continuar a gravar podcasts parvos, eventualmente vou escrever textos demasiado longos com pouca consistência e objectividade, mas garanto que deixei de me preocupar muito com either one.
Afinal de contas há um mundial à porta e eu não tenho tempo para lamúrias quando há um Suíça vs Camarões para ver.