O meu primeiro derby no Bessa

Regresso mais uma vez a 1994. Quase 1995. Mais concretamente ao dia trinta e um de Dezembro de mil nove e noventa e quatro. O meu primeiro jogo oficial do FC Porto fora das Antas. Que melhor local para o desfloramento nas deslocações ao exterior que na própria cidade, num derby? O cenário: Bessa. O Bessa antigo, com o Boavista antigo, aquele que dava luta a todas as equipas mas principalmente à nossa, em que cada jogo era tratado como se fosse uma questão de vida ou morte. Os adeptos incendiados de um ódio perene e intransmissível, encaravam sempre os clássicos da própria urbe como uma batalha pessoal, dura, violenta, um duelo com sabres até que o torpe oponente caísse numa poça da própria imundície. Eram jogos rijos, tanto nas Antas como na Boavista, mas quando os axadrezados estavam perante o próprio público…amigos, os guerreiros ainda era mais cruéis, mais agressivos, mais brutos, com faces ruborizadas e relâmpagos nos olhos, o anormal do laço agarrado às redes e um estádio a gritar vis insultos aos irmãos do burgo.

Foi neste cenário bucólico que um rapazola, enérgico com a força própria que todos têm na idade da estupidez adolescente, decide ir ver o jogo. Último dia do ano, reveillon pronto para arrancar, famílias reunidas em casa, muita água a cair dos céus lá fora e a bancada norte do Bessa cheia de Portistas, sem protecção contra a natureza que não nos queria lá a nenhum custo. O frio apertava e a chuva, inclemente, caía sobre as nossas faces impelidas por um S.Pedro boavisteiro. Mas os corpos, tão frios por fora, ardiam por dentro.

As equipas eram grandes. A nossa e a deles. Avançávamos com grandes lusos. Baía, Pinto, Santos…Folha. Dois grandes russos. Kulkov, o calmo, tranquilo, pacífico Vassili. E o irreverente, Serguei “olha para mim a conduzir como um louco na Avenida da Boavista” Yuran. E o resto? Brasileiros. Aloísio = Classe. Zé Carlos = Inteligência. Emerson = Força. Uma tríade de perfeição futebolística no Bessa. Do lado do inimigo, um misto de experiência, loucura, velocidade, perfeição e talento. Querem nomes? Nogueira, Bóbó, Artur, Timofte e Sanchez. Chega? Chega. Era um excelente Boavista. Acabaram em 10º a cinco pontos da Europa. Mereciam mais.

O jogo começa. Duro, como se espera. A bancada abana, sofre, inunda a zona oeste da Invicta com cânticos, todos saltam, todos gritam, todos vibram. Os dois miúdos, o jovem e o amigo, também vibram, também gritam, também saltam. Embriagados com a emoção da partida, reunidos no meio dos correlegionários, apoiam e incentivam a equipa. E é no meio desta espiral de loucura futebolística que o Boavista marca. Sanchez, lá ao fundo, na baliza por baixo da bancada sul. A moral que roçava os cabelos nas nuvens do Valhalla caiu-me aos pés. “Foda-se”, gritei, “Havias de morrer, boliviano de merda!”. Corrigiram-me, diziam que era colombiano. “Boliviano, chavalo!”, respondi, “é um filho da puta dum merdas, mas é boliviano!”. Queria lá eu saber de que raio de antiga província hispânica da sudamerica ele vinha. Tinha-nos marcado um golo. Odiava-o naquele momento.

Não me lembro dos nossos golos. Chovia muito e estava longe, naquela gélida e elevada bancada no topo Norte do estádio. Vi-os ao longe, aos gritos. Vi Emerson a marcar e a empatar a partida, vi Kulkov a colocar-nos de novo na posição onde merecíamos. Enquanto Robson saltava no banco, um autoclismo voou para junto de Alfredo, rodeado de inúmeros isqueiros e moedas no relvado, porque telemóveis naquela altura estavam tão longe dos nossos bolsos como a prancha de skate do Marty McFly. Vencemos o jogo. Depois de terminado e de esperar na bancada que nos mandem para a saída, vou conversando com amigos, cantando aos nossos heróis, celebrando mais uma vitória no campo do inimigo. Era Cipião em Cartago, McCarthy nas Filipinas, Monty em El-Alamein. Triunfante, fora do estádio, ainda quente por dentro mas tremendo de frio por fora, voltei a sair, para festejar o novo ano que estava ali mesmo à beirinha.

Um derby, à antiga. Daqueles que, ao ritmo que as coisas vão andando, nunca mais vou voltar a ver.

PS: Sei bem que a foto não é desse jogo. Mas estamos a festejar o título no Bessa, em 1992. Pareceu-me adequado.

5 comentários

  1. Tenho amigos que gostam de ver o Boavista na II Divisão B.
    Eu sou de opinião contrária. Gostaria de ve-lo forte, ao nível de um Braga. Só assim seriamos como povo do nrote mais fortes.

  2. Um prazer ler.

    Lembro-me desse jogo, como de muitos outros derbys, no Bessa e nas Antas. Jogos únicos, de facto.

    Estamos – nós, Boavisteiros – a viver um pesadelo, mas ainda não morremos. Nem morreremos.
    E sim, vamos voltar a respirar o ambiente de um clássico do Norte. E é já esta década…

    Cumps

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