No sábado à noite, depois de terminado o jogo e enquanto esperávamos que os jogadores se vestissem, retocassem a pintura que ostentavam nos respectivos focinhos, pintassem os focinhinhos dos filhos e sacassem as bandeiras de todos os cacifos onde as guardam religiosamente (ou talvez não, talvez tenham dado um salto ali a Mouzinho da Silveira ao cimo da Rua de S.João e compraram a do seu país com o orgulho estampado no rosto…é bom sonhar, não é?), íamos conversando nas bancadas, a única coisa que podíamos fazer até a festa per se começar. Não me interessam minimamente as performances dos miúdos que aparecem no relvado para brilhar com os pom-poms todos em riste e os vestidos fúcsia brilhantes nas luzes do estádio…todos esses deprimentes sucedâneos que têm tanto de futebol como eu de artista plástico. Fiquei até ao fim para prestar a minha homenagem a jogadores e treinadores, aos que me fazem deslocar ao estádio para os ver, que me põem rouco com gritos de incentivo e que de facto fazem de mim portista.
Estava em boa companhia, devo dizer. Amigos portistas de longa data, tinha na minha presença o meu passado e presente de vida azul-e-branca. O puto que comigo foi puto e que também comigo ia até às Antas no início dos mil-nove-e-noventas para criticar Ivic e aplaudir Robson estava lá comigo, numa reunião que teve tanto de nostálgica como de natural. O meu amigo “do costume”, companheiro de tantas andanças da bola, colega de chuvadas mil e o primeiro abraço depois do golo azul-e-branco. E junto a estes dois de sempre mais um, o meu companheiro em Dublin que este ano finalmente se decidiu a comprar o lugar anual e lá está sempre perto para a conversa do costume. Boa gente a marcar bons momentos. E maus, quando aparecem.
Falávamos da festa, da diferença desta festa para as antigas. Naquele tempo em que os jogos que terminavam a temporada eram vividos como uma festa do povo e o povo era outro. Há palcos pré-fabricados com publicidade no tampo; stewards na altura só se fossem bombeiros ou polícias e nada de cordas a separar o público dos seus heróis. Havia poucas danças, pouco fogo-de-artifício, nenhum efeito cénico e artístico. E a nostalgia lá mostrou a cara de novo e recordávamos como o campo parecia inclinado durante os últimos cinco minutos, a pender para o lado do túnel como um verdejante prado numa encosta solarenga…com um túnel perto de uma das suas laterais. Os atletas, fortes, autoritários, vedetas, encolhiam-se para perto da trajectória mais curta para uma rápida fuga para o balneário, para longe dos adeptos loucos que cedo correriam pela relva onde minutos antes tinham visto os ídolos a desempenhar a função que pagavam para ver. Uns lá conseguiam a recordação na forma de uma camisola, uma chuteira ou um par de meias. Ou só uma, qualquer coisa servia para levar para casa e mostrar à família. Era ver jogadores de cuecas, balizas partidas, redes desfeitas, jovens com pedaços de relva nas mãos e placards publicitários calcados. Era uma festa orgiástica de simbiose de mentes e almas, de união entre adeptos e jogadores com a luxúria da proximidade ao êxito a extravasar por todos os poros. Era belo, era humano, era vida.
Hoje em dia o espectáculo é bonito mas estéril. Grandioso mas frio. Produzido mas distante. É um enorme circo feito para shares de facebook e malta que aparece uma vez por ano para bater palmas e que não faz ideia quem joga nas outras vinte-e-nove (ou serão 33?) jornadas.
Tive a sorte de poder viver as duas situações. E quem como eu também o fez, aposto que gostava mais da maneira antiga.
Era de facto diferente. Mais popular e mais espontânea. Era uma festa à moda do Porto! VM
Prezado Jorge,
Parabéns pela brilhante prosa, que já é um habito prazeroso de leitura para mim.
Acompanhando o porta19, eu que estou do outro lado do atlântico, já lá vai uma meia dúzia de anos, acompanho e tenho muita e melhor informação, sobre o nosso Porto, do que lendo todos os artigos publicados a respeito.
Compartilho totalmente do tema do texto acima. Eu que sou mais “vivido” no velhinho e saudoso estádio das Antas, sou um nostálgico das festas, conforme o prezado tão bem descreve.
Bem haja por “alimentar” a porta19 com essa imensa qualidade.
Saudações portistas desde o outro lado do Atlântico…onde também se sofre e vive intensamente o nosso Porto!
para quem como eu já viveu durante um ano também “across the pond” (e do continente desse lado também), sei do que o meu amigo fala. nós, os da “old school”, temos de continuar a passar este conhecimento aos mais novos que nunca passaram por esses momentos.
um abraço e obrigado,
Jorge
Não tem de que meu caro!
Eu que agradeço a oportunidade de participar de um espaço com a qualidade do porta19.
Abraço,
“And enjoy the few days”.
Fernando
Estou de acordo com o que escreveu,só falta acrescentar,agora também vão para o estádio comer como se estivessem num restaurante,será que vivem o jogo como nós vivemos nesse tempo? E como eu ainda vivo.
também me incomodam as pipocas e os cachorros…mas menos que a malta que não consegue reconhecer os próprios jogadores. e incomoda-me ainda mais os que, não o conseguindo, não se preocupam em conseguir…
Bem vindo à civilização. É sempre a educar, a tirar o estado “puro”. Era bonito, era. Muito. Cheguei a ter na minha mesinha de cabeceira um bom bocado de relvado das Antas, quando festejámos a conquista do bi em 1986. Apodreceu uns dias depois e lá se foi, deitado pela minha mãe para o lixo.
não se faz, carago. devias tê-lo guardado em vácuo, porra!!! :)
Tal e qual aquilo que falei com os meus companheiros de bancada. Repito: Tal e qual! Um abraço de quem viveu e recorda com saudades esses tempos. Muito obrigado por este texto.
é bom ver que há Portistas que sentem o mesmo que eu. obrigado!
Ainda me lembro de obrigar o meu pai a invadir junto comigo o relvado no fim do último jogo só para sentir o “cheiro” da relva onde os meus ídolos jogaram….ainda hoje tenho um cd dos Pearl Jam que me caiu aos pés vindo do céu pois tinha sido largado de uma das gruas colocadas fora do estádio e junto aos placares electrónicos, cortesia da saudosa Roma Megastore.
Parece que vou ser a única voz discordante. Mas prefiro assim, como é hoje, conforto no estádio (acabou-se chegar a casa com as cuecas molhadas de tanta chuva apanhar no lombo), uma festa civilizada, em vez de uma réplica de dias de desconto no pingo doce, com o pessoal a correr que nem baratas tontas no meio do relvado :)
Pois eu que ainda sou de uma school mais velha, acho bem que as invasões de campo tenham acabado… -não que não tivesse a sua graça, visto na tv, mas lá, fazia medo…há muita gente tola, e o pior que existe é uma multidão de gente tola… sorry!…
também bendigo as cadeiras em vez dos degraus da pré-gaia…
e o coberto em vez da chuva…
o que interessa é ter passado por tudo, e saber permanecer em festa quando há festa, e em luta quando é preciso responder… o resto são modas e tempos que passam…
(e, como sei que não há bela sem senão, que venham as fúcsias e as pipocas, e os que não sabem nem nomes nem táticas, – que o clube também precisa deles para encher o estádio…)